Durante anos, as holdings foram construídas como pilares invisíveis do planejamento tributário e patrimonial brasileiro. Estruturas versáteis, capazes de centralizar lucros, proteger ativos e proporcionar uma vantagem competitiva silenciosa. Para muitos grupos empresariais, criar uma holding era tão automático quanto abrir uma filial ou registrar uma nova marca: um movimento padrão, quase ritual. Mas a lógica que sustentava esse modelo está virando pó diante das transformações impostas pela Reforma Tributária.
A criação do Imposto sobre Valor Agregado (IVAA) — desdobrado entre a CBS, de competência federal, e o IBS, de competência estadual e municipal — está redesenhando completamente o mapa do planejamento tributário nacional. A padronização das alíquotas e a rastreabilidade plena das operações comerciais anulam a principal alavanca da arbitragem fiscal: a complexidade do sistema. Se antes era possível explorar brechas regionais, simular operações em diferentes localidades ou simplesmente aproveitar silêncios normativos para reduzir carga tributária, agora tudo tende à uniformização, à transparência compulsória e à vigilância digital em tempo real.
A consequência mais direta desse cenário? Aquela holding criada anos atrás apenas para “centralizar recebíveis” ou abrigar imóveis de forma estratégica pode hoje ser vista como um passivo oculto. O que antes era uma avenida larga de oportunidades virou um beco monitorado por sensores invisíveis — algoritmos, malhas fiscais e cruzamentos de dados que não dormem.
Muitos grupos empresariais ainda operam com estruturas herdadas de uma lógica que não existe mais. Holdings inertes, sem operação efetiva, sem gestão real, sem quadro de pessoal ou qualquer funcionalidade além da conveniência tributária. Essas estruturas, que um dia foram sinônimo de sofisticação e inteligência fiscal, hoje se aproximam perigosamente da linha de risco. A Receita Federal, em conjunto com os fiscos estaduais, está cada vez mais equipada para enxergar por trás do CNPJ. E quando a substância econômica não acompanha a forma societária, o risco de desconsideração da estrutura se torna iminente.
A grande pergunta que paira sobre os empresários é: minha holding faz sentido dentro do novo sistema? Ela exerce papel ativo na governança do grupo, possui processos, registra atas, opera com autonomia gerencial — ou está ali apenas para facilitar transações internas e ocultar responsabilidades? A resposta, quando negativa, acende um sinal de alerta que não pode mais ser ignorado.
Autuações com efeitos retroativos, glosas de deduções, penalidades por elisão fiscal agressiva e, em casos extremos, responsabilização dos sócios são consequências cada vez mais comuns em fiscalizações com base em dados. O tempo da interpretação flexível acabou. O novo modelo exige estruturas coerentes, operacionais e justificáveis sob o ponto de vista negocial.
A governança corporativa, muitas vezes tratada como uma exigência de mercado financeiro ou uma vitrine para atrair investidores, passa agora a ser critério técnico de validade jurídica. Holdings com conselhos deliberativos atuantes, atas registradas regularmente, estrutura organizacional definida e políticas internas claras — especialmente no que diz respeito à conformidade fiscal e societária — estarão naturalmente mais protegidas contra autuações e questionamentos futuros.
Essa formalização, no entanto, precisa ser legítima. Não basta produzir documentos — é necessário que as decisões estejam alinhadas com a prática. Auditorias internas, pareceres jurídicos, reuniões de conselho e organogramas funcionais deixam de ser burocracia e se transformam em escudos contra acusações de fraude ou artificialidade.
Além disso, estruturas bem organizadas transmitem um sinal inequívoco de confiabilidade ao mercado. Em tempos de instabilidade normativa e insegurança jurídica, a percepção de ordem e transparência pode ser decisiva para o acesso a crédito, fechamento de parcerias estratégicas e valorização em processos de M&A. A governança deixa de ser custo e passa a ser ativo — talvez o mais valioso de todos.
A digitalização do sistema tributário brasileiro impõe um novo tipo de disciplina às empresas. A escrituração fiscal será, cada vez mais, online, interconectada e monitorada em tempo real. Isso significa que inconsistências antes despercebidas — ou deliberadamente manipuladas — passam a ser facilmente identificadas por sistemas baseados em inteligência artificial.
Neste cenário, holdings que não estão integradas tecnologicamente às suas controladas tornam-se gargalos operacionais e riscos fiscais. Fluxos descentralizados, ausência de padronização de dados, falhas de comunicação entre áreas e dependência de processos manuais formam o retrato de uma estrutura obsoleta — vulnerável e custosa. Mais do que adotar ERPs ou softwares de gestão, será preciso reformular a lógica de funcionamento das empresas, com integração real entre áreas jurídica, contábil, fiscal e de TI.
O investimento em tecnologia deixou de ser decisão estratégica e tornou-se imperativo de sobrevivência. As empresas que não se adaptarem a esse novo ritmo — ou que o fizerem de maneira superficial — perderão eficiência, enfrentarão penalidades e serão superadas por concorrentes mais ágeis, organizados e transparentes.
As estruturas utilizadas no planejamento sucessório também estão sob escrutínio. Holdings familiares criadas apenas como veículos para facilitar a transição de patrimônio, mas sem substância operacional, não passam mais incólumes pelo crivo da Receita. A expectativa é de que haja função econômica clara, atuação efetiva e documentação consistente. Sem isso, a desconsideração da estrutura é um risco real — com impacto direto sobre os bens da família e a segurança jurídica das próximas gerações.
Em operações de fusão, aquisição ou reestruturação, a régua também mudou. O valor de uma holding será medido não apenas pelos ativos que ela carrega, mas principalmente pela solidez de sua governança, regularidade fiscal, capacidade de resistir a uma due diligence minuciosa. O “valuation” de uma estrutura mal gerida, ainda que com patrimônio expressivo, tende a ser penalizado — pois ninguém quer comprar passivo oculto.
O novo ambiente fiscal brasileiro não abre espaço para improvisos. Quem ainda opera com estruturas herdadas do passado precisa reavaliar com urgência sua realidade. A blindagem patrimonial, tão valorizada por grandes grupos, continua sendo possível — mas ela exige hoje algo muito mais sofisticado do que um contrato bem redigido ou uma empresa de fachada.
Blindar significa comprovar. Significa operar de fato. Significa demonstrar, com documentos, sistemas e práticas recorrentes, que a estrutura tem razão de existir. É nesse contexto que o papel do advogado tributarista e do consultor societário se torna central. Mais do que resolver problemas, esses profissionais devem antecipar riscos, redesenhar estruturas e preparar o cliente para um cenário onde a inteligência está do lado do Fisco.
E nesse novo jogo, quem não mudar o tabuleiro, será engolido pelas regras.